Folha de São Paulo - 29/03/1997

MPB celebra músico jamais celebrado


ARMANDO ANTENORE



Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil participam de disco com 16 músicas do compositor baiano Batatinha, que morreu de câncer no dia 3 de janeiro deste ano.

A nata da MPB acaba de se reunir para homenagear um compositor que, morto há dois meses, atravessou a vida como coadjuvante. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia terminaram de gravar o CD "Diplomacia", coletânea com 16 canções de Oscar da Penha, o Batatinha.

Criador de versos surpreendentemente tristes para um baiano de Salvador _coisas do tipo "Meu desespero ninguém vê/ sou diplomado em matéria de sofrer"_, o sambista pertence à linhagem de Nelson Cavaquinho e Cartola.

Negro, de origem simples e baixa escolaridade (cursou apenas o primário), não sabia tocar nenhum instrumento, só caixinha de fósforo. Mesmo assim, compunha com inexplicável sofisticação melódica e literária.

Morreu no último dia 3 de janeiro, de madrugada, em consequência de um câncer que, partindo da próstata, se espalhou pelo corpo. Tinha 72 anos e nove filhos. Gráfico aposentado, morava numa casa alugada e equilibrava uma renda mensal que raramente ultrapassava os R$ 1.000. Gravou três discos e chegou a ser popular em Salvador, de onde saiu poucas vezes, mas nunca experimentou o gosto da fama nacional.

Ainda que tardiamente, "Diplomacia" pretende tirar da penumbra as melhores entre as mais de 70 músicas que Batatinha escreveu.

Mulata O CD chegará às lojas em maio ou junho, "antes do dia de São João", como gostam de frisar os produtores Paquito e J. Velloso. Quem se interessar pelo álbum, porém, vai suar para encontrá-lo. Sem a chancela das grandes gravadoras, o disco terá tiragem limitadíssima, de mil cópias, bancadas por uma instituição pública: a Fundação Cultural do Estado da Bahia.

"Nossa esperança é chamar a atenção da indústria fonográfica para conseguir prensar um novo lote, de preferência maior", confessam Paquito e J. Velloso, eles também baianos e compositores.

O artista plástico Carybé, ilustrador preferido de Jorge Amado, assina a capa de "Diplomacia". Um desenho estilizado mostra Batatinha dançando com uma mulata enquanto batuca numa caixa de fósforo.

Axé music A idéia do CD nasceu de uma polêmica há um ano e meio. À época, a imprensa de Salvador publicou uma série de artigos em que Paquito, J. Velloso e Jorge Portugal, outro letrista da Bahia, criticavam o monopólio da axé music nas rádios locais. Involuntariamente, Batatinha se tornou símbolo da discussão. No calor do debate, questionando os critérios que norteiam a indústria cultural brasileira, J. Velloso lançou a pergunta: por que ninguém faz um disco decente com o velho sambista? A indagação ficou sem resposta. "Resolvemos, então, encampar o projeto sozinhos", diz Paquito.

Para selecionar o repertório de "Diplomacia", o compositor e J. Velloso promoveram quatro longas entrevistas com Batatinha, todas gravadas em fitas cassetes. Nas conversas, o sambista ia relembrando a própria vida. E puxava da memória as dezenas de canções que concebeu em 50 anos de boêmia. A maioria das músicas nunca conheceu nenhum tipo de registro _nem mesmo uma anotação. O autor preferia guardá-las de cabeça. Escolhidas as 16 composições, Batatinha tratou de chamar Chico, Gil, Caetano, Bethânia e também Jussara Silveira, cantora mineira que despontou na Bahia_ para participar do álbum. Cada convidado interpreta, sozinho, uma faixa.

O homenageado divide outra com Riachão (o pai do clássico "Cada Macaco no Seu Galho") e mais três sambistas: Valmir Lima, Edil Pacheco e Nelson Rufino. As dez músicas restantes ficam por conta apenas de Batatinha, que canta no tom agudo de sempre, embora levemente enrouquecido pela velhice.

As gravações do disco começaram em setembro de 1996. Um mês antes, o sambista fora internado, já às voltas com o câncer. Do hospital, mandou um recado para Paquito e J. Velloso: "Não desistam do projeto, porque vou sair logo daqui". Saiu, mas não teve tempo de ver o CD pronto. Gilberto Gil colocou voz na última canção do álbum ("Imitação") há somente duas semanas.

Circo Foi Jamelão quem primeiro gravou um samba de Batatinha. Registrou "Jajá da Gamboa" em 1960, quase 20 anos depois de o compositor debutar na Rádio Sociedade da Bahia. O disco "Maria Bethânia" _de 1965, que lançou a cantora nacionalmente e celebrizou a engajada "Carcará" (de João do Vale e José Cândido)_ trazia duas músicas do autor baiano.

"Só Eu Sei" e "Diplomacia" (a mesma que hoje empresta o nome à coletânea) apareciam, juntas, numa única faixa. Em 1977, o LP "Muitos Carnavais", de Caetano Veloso, abriu espaço para "Hora da Razão". O maior sucesso de Batatinha, entretanto, está num outro importante disco de Bethânia, "Drama", que saiu em 1972.

Chama-se "O Circo" e é uma das raras marchas assinadas pelo sambista _que, embora se aventurando por novo ritmo, não perdeu a habitual melancolia. No início da canção, lamenta: "Todo mundo vai ao circo/ menos eu, menos eu".