Folha de São Paulo - 14/03/1997

Cantora dialoga com referências


PEDRO ALEXANDRE SANCHES



A receita não é inovadora. "Jussara Silveira" inclui ingredientes como a voz tranquila de uma cantora discreta, arranjos despojados, repertório elegante equilibrado entre standards de compositores célebres e "descobertas".

O resultado podia ser apenas correto, mas, no caso de Jussara Silveira, é bem mais que isso, por umas poucas razões: ela prima pelo bom senso e pelo bom gosto em suas escolhas, transformando cada momento potencialmente banal em algo especial, e dialoga com suas influências sem pretender mimetizá-las, repetir-lhes os padrões estabelecidos. É dessa forma que esta nova/veterana cantora se apresenta como atualização inteligente de Maria Bethânia, em grande medida intumescida pela sombra de João Gilberto. Bethânia é a baiana anterior, que se derramou no mundo pelo drama, pela dramaticidade, pelo arrebatamento em cada nota musical.

Jussara reza na cartilha da mestra, só que de forma diametralmente oposta, afastando o drama e instalando o distanciamento a cada acorde. É só ouvir "Espera", do gênio subestimado Batatinha (morto recentemente), que chegou ao resto do Brasil pelas graças de Bethânia, nos 60 e 70. Bethânia potenciava a tristeza e a agonia presentes em Batatinha, em canções como "O Circo" (72). Jussara o torna sereno, quase contente.

É uma homenagem altiva à influenciadora Bethânia, e não é a única do CD. Há "Eu Vou Te esquecer", preciosidade de Beto Pellegrino e Ariston, a única faixa que insere drama em sua textura. E ainda assim é drama programático, presente apenas para honrar Bethânia. E há, ainda, "Só Vou Gostar de Quem Gosta de Mim", de Rossini Pinto, gravada por Roberto Carlos em "Em Ritmo de Aventura" (67). É referência óbvia ao disco que Bethânia dedicou à obra do autor em 93. Mas, respeitosa, Jussara afirma: o Roberto dos anos 60 é muito mais profícuo que o dos 70, que Bethânia compilou.

"Orientação", de Tuzé de Abreu, é fado à moda portuguesa gravado com justeza que não se ouvia em voz brasileira desde... Maria Bethânia. O CD tem outros _vários_ destaques. "O Que Pode Ser", de Duda e Paquito (outro compositor querido de Bethânia nos últimos anos), abre o trabalho de forma brilhante, e é seguido por "Congênito" (76), obra-prima de Luiz Melodia. De Chico Buarque, escolhe "Ludo Real" (87), tão bela quanto pouco óbvia.

Derrapões existem, como na baianidade chavão de "Oxotocanxoxo" (Roberto Mendes/Antônio Risério) e no formalismo sempre excessivo de José Miguel Wisnik em "Saudade da Saudade". Mas o resultado, inevitavelmente, é de nobreza indisfarçada, de apelo muito universal e pouco baiano, como convém à boa cantora brasileira _e não atrelada a convenções ultrapassadas que Jussara é. (PAS)