Jornal O Globo (19 de junho de 1998)

Nova voz de Caymmi

Duas décadas depois de Gal, a cantora Jussara Silveira recria clássicos do mestre baiano


Antônio Carlos Miguel



Perfeccionista e exigente, Dorival Caymmi também sepre foi o melhor intérprete de suas canções. Mas, aos 84 anos, com quase seis décadas de carreira, o compositor baiano nunca se fechou aos novos talentos. Procurado no início do ano por Ronaldo Bastos (também compositor de muitos clássicos da MPB e dono do selo Dubas Música) e pela cantora Jussara Silveira, Caymmi deu o seu aval ao disco que os dois idealizaram, recriando 12 clássicos de seu repertório.

O songbook anterior dedicado por uma cantora a Caymmi foi lançado há cerca de duas décadas por Gal Costa.

- Percebi logo que a moça canta bonito e tem bom gosto - disse Caymmi, na semana passada, no segundo encontro com Jussara. - Além disso, não poderia negar um pedido vindo de um amigo como Ronaldo, colega de meu filho Danilo na escola.

"Canções de Caymmi" é o segundo disco de Jussara, e deve chegar às lojas em agosto. Ele traz 12 clássicos do baiano e algumas vinhetas introdutórias, cantigas de domínio público reconhecidas pelo próprio compositor. Produzido pelo violonista Luiz Brasil (da banda de Caetano Veloso), o disco tem um tratamento acústico e luxuoso, fiel ao universo de Caymmi. Bastos, que no fim de 1996 já tinha relançado o disco de estréia de Jussara - uma produção da própria cantora também em dupla com Luiz Brasil - lembra que sempre sonhou com este projeto.

- Sou um profundo admirador de Caymmi, sinto-me muito próximo de sua música - conta Bastos. - Apesar da aparente simplicidade de suas canções, elas são fruto de um longo processo de depuração, ele não é um ingênuo. E, quando assinei com Jussara para relançar seu primeiro disco, incluí no contrato este projeto. Ela é a cantora perfeita para regravar Caymmi.

No encontro no apartamento de Caymmi, em Copacabana, Jussara, acompanhada de Ronaldo Bastos e do fotógrafo Cafi, revela ser uma "autêntica falsa baiana".

- Toda minha família é baiana, mas eu nasci numa cidade no norte de Minas e, ainda pequena, voltamos para Salvador, onde fui criada - diz Jussara. - Em 89, fiz meu primeiro show solo, em Salvador, no Teatro Castro Alves. Em seguida me mudei para São Paulo e, depois, para o Rio.

Detalhes que a aproximam ainda mais de Caymmi, baiano de nascença, mas que vive no Rio desde 38 e é casado com uma mineira, Stella Maris.

- Você pode estar hoje no Rio, mas nunca saiu da Bahia - comenta o PhD em baianidade. - Eu, que saí em 38, continuo ligado à terra. E dona Stella, que nasceu em Pequeri, cidadezinha na Zona da Mata, perto de Mar da Espanha, quando descobriu a Bahia ficou encantada. A Bahia nos acompanha sempre.

Um bate-papo regado pelo violão e a voz do mestre

Por quase duas horas, sempre com o violão, Caymmi conversou e cantou, sempre explicando como criou alguns de seus clássicos. Jussara lembra que no primeiro encontro com Caymmi procurou esclarecer dúvidas sobre algumas das músicas selecionadas para o disco. Chegou a regravar "Lá vem a baiana" ao descobrir que não tinha seguido a nota original. Ela selecionou as 12 canções do disco com ajuda do também compositor Ariston (que já tinha contribuído para a concepção de seu primeiro álbum).

- Inicialmente, tinha pensado em me concentrar num Dorival Caymmi mais urbano, nos seus samba-canções - explica Jussara. - Mas, aos poucos, vimos que é impossível separar Caymmi do mar. Então, acabamos oferecendo um painel abrangente de sua obra, passando pelas canções praieiras e algumas de suas mulheres. Tomamos como base o "Cancioneiro da Bahia", um livro de canções de Caymmi dividido por temas.

Bastou diz que optou por não interferir na seleção do repertório, mas não abriu mão de ditar a seqüência das faixas e também idealizou a capa.

- Acho que a cantora é que deve escolher as músicas, fiquei muito satisfeito com o que Jussara quis cantar e assino embaixo - diz. - Mas discutimos muito para chegar à montagem final, que acabou como eu queria. Para fechar o disco, nós utilizamos o assovio da gravação original de Caymmi de "O vento".

Além de clássicos como "Quem vem pra beira do mar", "Você não sabe amar", "O vento", "Maracangalha", "Saudade de Itapoã" e "Nem eu", Jussara interpreta músicas menos gravadas como "Horas" e "O anjo da noite".

- "Horas" foi gravada pelo Quarteto em Cy no disco com a trilha da novela "Gabriela", e depois também teve uma bonita regravação da Nana Caymmi no "Songbook" de Caymmi lançado por Almir Chediak - conta Jussara. - Já "Anjo da noite" é uma das primeiras melodias do filho Danilo que Caymmi letrou. Ela traduz muito da experiência de vida dele.

Para chegar a Caymmi, Jussara revela que teve que passar por Chico Buarque, Caetano Veloso e João Gilberto.

- Os compositores que acompanhei desde criança foram Chico e Caetano - conta. - Claro que também conhecia e gostava das canções de Caymmi, mas foram as gravações de João Gilberto e Caetano que me despertaram para ele.

Aos 84 anos, é o canto afinado do compositor que encanta a nova sereia
Assovios e memórias da juventude inspiraram faixas como "Vou vê Juliana"

Em abril de 1997, no lançamento do CD duplo "Caymmi inédito"- gravado nos anos 80, como brinde de uma empresa e só editado comercialmente pela BMG no ano passado - ele mostrou, no show para convidados, no Golden Room do Copacabana Palace, que continua o insuperável cantor de sempre. A voz bonita em seus profundos graves, segura e afinada, nem parecia vir de um octogenário. Um ano depois, com um Prêmio Sharp de Música fresquinho na estante ("Inédito" foi escolhido o melhor disco de MPB de 97), é a voz de Caymmi que encanta a sua nova sereia.

- No primeiro encontro, saí da casa de Caymmi chorando, é emocionante ouvir essas músicas com ele - diz Jussara. - Caymmi é insubstituível, mas acabei perdendo o medo, vi que também podia cantar suas músicas com propriedade, fazer um trabalho sincero, não errando e realizando algo que ele possa gostar.

O compositor demonstra gostar quando a voz de Jussara se junta à sua. E, depois de cantarolar "História pro Sinhozinho", Caymmi comenta a menção da letra à marimba.

- O instrumento chegou até nós através da música do Caribe, mas tem raízes na África - lembra. - Na minha infância em Salvador, ainda convivi com muitos escravos alforriados. A cultura baiana deve muito a essa gente.

O artesão do som das palavras fala sobre sua obra

Perguntado qual seria o rio que o namorado tem que atravessar para encontrar a namorada, na canção "Vou vê Juliana", Caymmi fica em dúvida, seria mesmo o Jaguaribe ou o Camurigipe? Mas lembra de uma senha que os jovens usavam na época: assoviavam uma música antiga para chamarem as namoradas. Já sobre "O vento", conta que a música começou a nascer a partir de um jogo com as sílabas de um trecho da letra:

- Brinquei com a sonoridade, o espelhamento de vela e leva - explica Caymmi. - Ao cantar "vento que dá na vela, vela que leva o barco", percebi que tinha a essência daquela nova música.

Caymmi também resgatou uma rara parceria com Jorge Amado e Carlos Lacerda - antes que a guinada à direita do ex-governador da Guanabara o afastasse do escritor baiano - "Beijos pela noite". E, em mais uma coincidência, Jussara contou que o segundo marido de sua mãe, também chamava-se Carlos Lacerda, só que em vez de político, era pianista, e foi outro amigo de Caymmi.

As pérolas eternas recriadas
Das canções praieiras às urbanas

O vento: Na abertura do CD, Jussara é acompanhada pelo violão de Luiz Brasil. O assovio de Caymmi fecha o CD.

Lá vem a baiana: A canção mais suingada do disco, com típico sotaque de Salvador.

Nem eu: Canção da fase urbana de Caymmi.

O anjo da noite: Uma das primeiras parceiras de Caymmi com o filho Danilo.

Vou vê Juliana: É introduzida pela vinheta "Você diz que amar é crime".

Maracangalha: Com Carlos Malta (picolo).

Você não sabe amar: É introduzida pelo tema popular "Yayá não sabe".

Horas: Lançada na novela "Gabriela".

Milagre: Canção praieira que é emendada à faixa "História pro sinhozinho".

Quem vem pra beira do mar: na introdução ela interpreta "Canto de Nanã".

Saudade de Itapoã: Participação especial de Jaques Morelenbaum (violoncelo).

Adalgisa: A forte percussão funciona como contraponto ao canto límpido de Jussara.